A BIBLIOTECA DE MINHA TERRA
*João Ubaldo Ribeiro
Sei que é lugar-comum, mas não há forma mais simples de dizer o que quero: parece que foi ontem que eu morava em Itaparica, minha terra de que nunca esqueço, e saía de casa pela madrugada antes de o Sol raiar, todos os dias. Passava no Mercado, via a chegada das canoas e saveiros que tinham atravessado a noite labutando no mar, conversava com meus amigos peixeiros e barraqueiros e finalmente ia para minha sala na Biblioteca Juracy Magalhães Júnior. Minha sala, sim. A Biblioteca, generosamente, tinha cedido uma sala para meu uso exclusivo, me confiara a chave da casa, era agora meu querido abrigo, meu local de trabalho, minha toca.
Nada equivale à felicidade de chegar, o Sol já começava a reluzir como só reluz em Itaparica, abrir as grandes portas laterais que davam para flores, trepadeiras e arbustos coloridos e inspirar o ar de perfume sutil que vinha na brisa. O trabalho tinha sempre que ser adiado algum tempo, porque era impossível resistir às novidades de cada dia, um ninho de marimbondos em construção, um beija-flor turista, os bem-te-vis bisbilhoteiros de sempre, borboletas de todos os matizes, até mesmo as lagartonas estampadas que aparecerem uma vez e ficaram uns trinta dias nas árvores, para nunca mais voltar. Cada dia era uma festa diferente e aprendi muito a viver e estimar cada um deles – isto também devo à Biblioteca.
E havia os livros, os livros! Os livros forrando as paredes, meus volumes misturados com os da casa, livros por tudo quanto era lado. Para mim, bicho criado no meio de livros, não pode existir ambiente mais aconchegante e, ao mesmo tempo, revigorante do que eles, fosse nas enormes estantes mais ou menos organizadas de meu pai, fosse nas pilhas montanhosas de tudo quanto era publicação imaginável que meu avô, o coronel Ubaldo Osório, tinha em casa e na Coletoria Federal onde fingia que trabalhava, mas na verdade, só pensava em procurar, cantar e defender ferozmente as maravilhas de nossa terra, que ele achava a melhor do mundo em qualquer categoria concebível. E agora eram os livros da Biblioteca. Desejei, muitas vezes, que o fantasma de meu avô aparecesse por ali, pois tenho certeza de que ele freqüenta a Biblioteca, seria também o lugar dele. Mas, infelizmente, ele nunca se dignou e deixei de ter as conversas que, quando ele era vivo, eu era bobo demais para entender.
A Biblioteca de minha terra está festejando 35 anos. E que Biblioteca! Grande parte de seu acervo está um pouco velha, mas isso, sob um certo aspecto, é até um atrativo. Lá se encontram os clássicos, lá se encontram centenas ou milhares de livros valiosos, hoje disponíveis somente com dificuldade, em qualquer parte. E o acervo mais atualizado presta serviços aos estudantes e a todos os que a procuram. É uma biblioteca preciosa e viva. Milagre, num país acostumado a ver a cultura tratada como bem de quinta classe. Milagre, sim, mas obra humana, desde o general Juracy Magalhães, que até o fim da vida se ocupou da biblioteca, através da fundação que criou. A bibliotecária que a dirige atualmente, minha amiga Dalva, de quem pretendo matar as saudades neste verão, junto com todo oceano de saudades da ilha, que não me deixam nunca. Dalva é danada. Trabalhadora, sensível, tenaz, empreendedora, transformou a biblioteca num centro de cultura com iniciativas de levar às lágrimas quem testemunhar a alegria da gente humilde da terra em assistir e participar de coisas que antes não estavam ao seu alcance. Eu devia tomar parte pessoalmente no festejo, mas a vida não deixou. O coração, no entanto, continua lá. Depois que entrou, nunca mais saiu.
Rio de Janeiro, 28 de novembro de 2003
* Nota da direção da ACB: João Ubaldo Ribeiro, formado em Direito, escritor consagrado, membro da Academia de Letras da Bahia e da Academia Brasileira de Letras. Abaixo, fotografia do mesmo com sua amiga Dalva Lima, mencionada no texto e de Benjamin Batista, presidente da ACB, no aniversário do imortal escritor em 2009 na referida Itaparica.
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